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terça-feira, 4 de outubro de 2011

Uma voz que resiste às tempestades

            Há muito tempo eu planejava escrever um pouco aqui no Violeta sobre uma das mulheres que mais admiro. Como recentemente terminei de ler sua autobiografia, resolvi que esse era o momento certo de juntar todas as informações que adquiri, misturá-las com a grande admiração que sinto e construir um texto que transmita ao menos um esboço dessa grande personagem.

Fonte: http://lastfm.com.br
            Alguns anos atrás, descansando em meu quarto numa tarde como outra qualquer, uma voz me capturou. Era doce e suave, mas ao mesmo tempo vigorosa e persistente, como se, flutuando no céu, vencesse os estrondos de uma tempestade. Logo descobri a origem daquela voz: como é de costume aos domingos, meu pai estava ouvindo música e acabara de colocar no som o CD “Gracias a la vida”. Corri para lhe perguntar quem cantava – e assim conheci a voz que desde então me encanta não apenas pelo seu papel na música, mas na política e na vida de muitos: a voz de Joan Baez.


            Em uma entrevista realizada no início de sua carreira, que está presente no documentário lançado em 2009 “Joan Baez – How sweet the sound”, Joan afirma que gostaria de ser vista primeiramente como um ser humano, em segundo lugar como uma pacifista e, por fim, como cantora. De fato, nascida em Nova York em 1941, Joan Baez cresceu para se tornar não apenas um dos maiores nomes do folk, mas uma das vozes mais proeminentes do ativismo político da segunda metade do século XX.
            Desde que se apresentou pela primeira vez no café Club 47 em Cambridge, a jovem de longos cabelos negros e pés descalços ganhou o mundo, conquistando rapidamente o público com sua voz cristalina. No entanto, Joan Baez sempre se preocupou em conduzir sua carreira sem se render à indústria musical e ao inebriante universo das celebridades. Com isso, recusou propostas de grandes gravadoras e manteve-se fiel às suas posições políticas.
Embora não se arrependa de sua decisão, sua carreira sofreu uma espécie de crise de identidade nos Estados Unidos, diferente de outros países. A cantora revela em sua autobiografia, escrita em 1987:

“I really live in another world. It doesn’t make me unhappy, but it does make me lonely. [...] I am a stranger in my own land, always looking to feel comfortable without selling my soul.”

         “Eu realmente vivo em outro mundo. Isso não me deixa triste, mas sinto-me sozinha. [...] Sou uma estranha em minha própria terra, sempre procurando me sentir bem sem vender a minha alma.”

Joan Baez na Marcha sobre Washington, em 1963. Fonte: Wikipedia

          Uma breve pesquisa revela que, guiada por sua inabalável coragem, Joan Baez esteve presente nas principais discussões daquela época – com o violão em mãos ou não. Baseando-se nos princípios da não-violência defendidos por Gandhi e conduzida por uma fervorosa paixão em defesa da vida e dos direitos humanos, Joan Baez lutou ao lado de Martin Luther King Jr. no movimento pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos, esteve à frente da resistência à guerra do Vietnã, fundou em 1964 o Instituto para o Estudo da Não-Violência (Institute for the Study of Nonviolence), entrou para a Anistia Internacional na década de 1970 e se apresentou em diversos países do mundo.
            Em uma entrevista de 1970, Joan Baez explica:

Foto por Dana Tynan, 2003
            “[...] music alone isn’t enough for me. If I’m not in the side of life in action as well as in music, then all these sounds, however beautiful, are irrelevant to the only real question of this century: How do we stop men from murdering each other, and what am I doing with my life to stop the murdering?”

            “[...] A música sozinha não é suficiente para mim. Se eu não estiver do lado da vida na ação assim como na música, então todos esses sons, por mais bonitos que sejam, são irrelevantes para a verdadeira questão deste século: como podemos impedir que os homens matem uns aos outros, e o que estou fazendo com a minha vida para impedir essa matança?”

O mais admirável é que, ao ler sua autobiografia, tive o grande prazer de constatar que Joan Baez não seguiu esse caminho por não ter medos. Eles estavam sempre presentes, pressionando-a e por vezes lançando-a em crises, indisposições e depressões. No entanto, sempre honesta com seus princípios, ela enfrentou todas as dificuldades diariamente, entregando-se ao que via como certo.
            Acompanhando sua narrativa – além de tudo, ela tem um grande talento com as palavras -, pude conhecer passagens de sua vida que me emocionaram profundamente, como os treze dias em que, visitando o Vietnã, vivenciou um dos mais intensos bombardeios ao país, ou o belíssimo relato de suas experiências com o Dr. King, além de outras riquíssimas histórias acerca de seus shows, festivais e protestos.
           Durante esse longo período em que mergulhei em sua autobiografia, em sua própria música e em documentários diversos, percebi com grande alegria que a minha primeira impressão continua verdadeira. A voz de Joan Baez é síntese de sua pessoa: doce, mas vigorosa, sempre resistindo às tempestades.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Pintando uma cidade atemporal à meia-noite

Nota: Não recomendo a leitura desse post aos que ainda não conhecem a história do filme.

Cartaz de Meia-Noite em Paris
  










 "The job of the artist is not to succumb to despair, but to find an antidote for the emptiness of existence."
(O trabalho do artista não é sucumbir ao desespero, mas encontrar um antídoto ao vazio da existência)
 

            Sem dúvida alguma, seria um absurdo não escrever aqui no Violeta sobre o filme que me encantou de tal maneira que fui ao cinema assisti-lo três vezes, sendo que a cada vez a obra tornou-se ainda mais brilhante aos meus olhos. Meia-Noite em Paris, o mais recente filme de Woody Allen, mergulhou-me em um sonho do qual foi difícil despertar.
            Logo de início, Woody Allen nos apresenta uma sequência de imagens que percorrem a cidade dia e noite, desde grandes monumentos a quiosques e esquinas, como uma única pintura capaz de retratar Paris em todo o seu esplendor. Esses primeiros minutos são de tirar o fôlego e introduzem a visão do protagonista, Gil Pender, um jovem roteirista de Hollywood cujo maior sonho é escrever um romance.
            Visitando a cidade com sua noiva Inez, que não compartilha de seu entusiasmo pelas ruas parisienses sob a chuva, Gil pretende viver Paris intensamente, para conhecer a cidade que nos anos 20 abrigou e encantou seus grandes ídolos, como Ernest Hemingway e F. Scott Fitzgerald. Para isso, no entanto, precisa fugir da companhia um tanto indesejável de Paul e Carol, casal amigo de Inez que os acompanha em todas as visitas turísticas por Paris.
Então, durante uma caminhada noturna pela cidade, enquanto sua noiva está dançando com os amigos, o jovem aspirante a escritor encontra um carro antigo repleto de curiosas figuras que o convidam a aproveitar a noite parisiense. Ao entrar no carro, Gil Pender inicia sua verdadeira viagem. No momento seguinte, está sentado em um bar conversando com o próprio Hemingway, que levará seu romance ainda em construção para a análise de Gertrude Stein.  
Dessa maneira, Allen nos conduz por uma viagem repleta de personagens fascinantes que marcaram o passado e captura com primor os trejeitos desses grandes nomes da nossa História. Hemingway (Corey Stoll), F. Scott Fitzgerald (Tom Hiddleston), Zelda Fitzgerald (Alison Pill), Cole Porter (Yves Heck) e Gertrude Stein (Kathy Bates), interpretados de forma singular, marcam então a jornada de amadurecimento literário e pessoal do protagonista (Owen Wilson).
Woddy Allen cria ainda personagens hilários e universais, como a família de Inez (através dos quais Allen consegue atacar com seu humor aguçado a sociedade norte-americana e o Tea Party) e Paul (Michael Sheen), o inesquecível pedante. Marion Cotillard, interpretando a jovem Adriana, está magnífica. A interpretação de Dalí por Adrien Brody também é imperdível e consiste em um dos melhores momentos do filme.
Assim, utilizando-se de personagens instigantes, Woody Allen retrata e questiona a nostalgia e a grande admiração que sentimos pelo passado, tratando ainda de temas como a arte, a vida e a morte. Em um momento do filme, ao admirar Paris, Gil diz que nenhuma obra de arte é capaz de comparar-se a uma grande cidade (“No work of art can compare to a city”). Bom, talvez não. Mas devo dizer que, para mim, Meia-Noite em Paris é tão belo, fascinante e encantador como a própria Paris.

sábado, 30 de julho de 2011

Retornando das férias...

Um presente!








"Life seems but a quick succession of busy nothings."
("Nossa vida não passa de rápida sucessão de urgentes insignificâncias”¹)
 (Mansfield Park, Jane Austen)









            Minhas férias chegaram e já foram embora. Parece que passaram  num segundo! Enfim, eu planejava escrever bastante aqui no Violeta durante as férias, já tinha várias ideias em mente. No entanto, em virtude de alguns imprevistos, não foi possível. Acabou que assim tirei umas férias do blog também (embora não precise, pois um de meus maiores prazeres é escrever para o Violeta). Não costumo escrever muito sobre a minha vida aqui, mas sinto que essa notícia não poderia deixar de registrar: passei no vestibular agora no meio do ano! Foi uma grande surpresa, pois ainda não completei o Ensino Médio. Fiz vestibular para Letras, uma decisão que tomei há muito tempo. Fiquei bem feliz com o resultado, mas resolvi terminar o Ensino Médio primeiro. Assim, as aulas voltaram e agora tenho que me preparar para o próximo vestibular no fim do ano. 
            Amanhã mesmo haverá um novo post, para compensar a ausência. Aliás, a foto acima é de um caderno lindo que ganhei de presente de minha irmã. Além da capa linda, algumas páginas têm citações de Jane Austen e ilustrações de sua obra. Um grande presente!





¹A tradução da citação não é minha e, infelizmente, não consegui a fonte.

segunda-feira, 2 de maio de 2011

A bravura e a suavidade da menina do mar

Cartaz da exposição  Uma vida de Poeta



Biografia

Tive amigos que morriam, amigos que partiam
Outros quebravam o seu rosto contra o tempo.
Odiei o que era fácil
Procurei-me na luz, no mar, no vento
- Sophia de Mello Breyner Andresen






            Há alguns dias, percebi que ainda não havia falado aqui no blog sobre uma de minhas poetas* favoritas, Sophia de Mello Breyner Andresen. Assim, resolvendo corrigir logo esse descaso, mergulhei em suas poesias repletas de maresia e escrevi esse modesto texto, não como fruto de análises profundas sobre sua linguagem poética, mas como resultado de uma leitura carregada de admiração.
            Sophia de Mello Breyner Andresen nasceu no Porto em 1919 e faleceu em 2004. Em ocasião de sua morte, a escritora Maria Velho da Costa afirmou, com precisão: “Perdemos a menina do mar”. De fato, a poesia de Sophia é a pura imagem do mar e da brisa, com seus momentos de calmaria infinita e de turbulências arrasadoras. Em A Vaga, podemos observar essa dicotomia fascinante que permeia sua obra:

A Vaga

Como toiro arremete
Mas sacode a crina
Como cavalgada

Seu próprio cavalo
Como cavaleiro
Força e chicoteia
Porém é mulher
Deitada na areia
Ou é bailarina
Que sem pés passeia

            No entanto, Sophia não se manifestou apenas na poesia, escrevendo também contos, ensaios e literatura infantil. Além disso, traduziu Eurípedes, Dante e Shakespeare. Foi consagrada com inúmeros prêmios, dentre eles o Prêmio Camões, em 1999, sendo considerada uma das maiores poetas portuguesas do século XX.
            A obra de Sophia é repleta de imagens do mar, da brisa e do vento, com descrições arrebatadoras das paisagens que permearam sua vida e imaginação. Mas sua poesia é composta também de uma intensa consciência social, política e moral, refletindo os acontecimentos e batalhas de sua própria vida.
            Sophia Andresen foi ativista de grande importância na resistência ao regime salazarista, sendo sócia-fundadora da Comissão Nacional de Socorro aos Presos Políticos. Em 1975, foi eleita como deputada à Assembléia Constituinte pelo Partido Socialista. Apesar de ter uma vida política breve, Sophia lutou durante toda a sua vida pela liberdade, igualdade e justiça, causas que estão sempre presentes em sua obra. No poema 25 de Abril, Sophia comemora a Revolução dos Cravos:

Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livre habitamos a substância do tempo

            Em sua obra, há ainda um rico conjunto de reflexões em formato de prosa e verso acerca da arte poética. Em um discurso proferido na Sociedade Portuguesa de Escritores, Sophia explica: “Sempre a poesia foi para mim uma perseguição do real. Um poema foi sempre um círculo traçado à roda duma coisa, um círculo onde o pássaro do real fica preso. E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu sempre dentro dessa busca atenta.” E acrescenta: “A moral do poema não depende de nenhum código, de nenhuma lei, de nenhum programa que lhe seja exterior, mas, porque é uma realidade vivida, integra-se no tempo vivido”.

        
O Poema

O poema me levará no tempo
Quando eu já não for eu
E passarei sozinha
Entre as mãos de quem lê

O poema alguém o dirá
Às searas

Sua passagem se confundirá
Com o rumor do mar com o passar do vento

O poema habitará
O espaço mais concreto e mais atento
No ar claro nas tardes transparentes
Suas sílabas redondas

(Ó antigas ó longas
Eternas tardes lisas)

Mesmo que eu morra o poema encontrará
Uma praia onde quebrar suas ondas

E entre quatro paredes densas
De funda e devorada solidão
Alguém seu próprio confundirá
Com o poema no tempo



      













            Ao penetrar nas palavras de Sophia de Mello Breyner Andresen, o leitor sente com clareza a maresia e a pureza que compõem a alma daquela que, com tanta suavidade, coragem e bravura, derramou suas palavras sobre as páginas em branco, transformando-as em pura expressão de sua vivência e do seu tempo.


* Optei por utilizar o termo poeta, pois, durante minhas pesquisas, descobri que Sophia Andresen primava por esse termo, uma vez que considerava que a palavra poetisa atribui às mulheres um caráter de inferioridade em relação aos homens que exercem a mesma atividade. [Mais aqui]

Algumas referências:
Vilma Arêas, Sophia: Clássica e Anticlássica (prefácio do livro Poemas escolhidos: Sophia de Mello Breyner Andresen – Companhia das Letras);

quinta-feira, 7 de abril de 2011

A calmaria do entardecer de Hiroshima

Ilustração da capa de Hiroshima A cidade da calmaria, de Fumiyo Kouno
            Há três semanas, após acompanhar com grande pesar as tragédias que assolaram o Japão no início de março e observar com surpresa a determinação de seu povo, li a Graphic Novel em estilo mangá HiroshimaA cidade da calmaria, de Fumiyo Kouno. Foi impossível conter a emoção. Lágrimas correram e fiquei pensando profundamente durante as horas seguintes, admirada com a força do povo da Terra do Sol Nascente e com as provações pelas quais passaram durante sua história. 
            HiroshimaA cidade da calmaria, obra premiada lançada no Brasil pela JBC no ano passado, relata a trajetória de duas personagens de gerações distintas que sofreram, em tempos diferenciados, as consequências do desastre nuclear de 1945. Primeiramente, o cenário é o Japão de 1955, em que a jovem Minami Hirano, sobrevivente da bomba de Hiroshima, observa com grande pesar e assombro as pessoas de sua cidade e si mesma dez anos após o fatídico evento. Na segunda parte, por volta de três décadas depois, há um retrato da vida de Nanami Ishikawa, japonesa cuja história relaciona-se intimamente com a primeira jovem que acompanhamos.
            O traço de Fumiyo Kouno é leve e delicado, possuindo assim aquela beleza singular presente apenas nas coisas simples, uma beleza que toca e emociona. Além disso, A cidade da calmaria não é um retrato sobre a bomba de Hiroshima em si e seus efeitos catastróficos imediatos, mas um relato das conseqüências que a terrível Rosa Nuclear causou sobre o cotidiano dos habitantes de Hiroshima e seus familiares, dos resíduos e incertezas que essa deixou durante décadas sobre os japoneses. Dessa maneira, o mangá não retrata os desastres em uma escala geral. Ele o faz através da visão particular de duas jovens, demonstrando com primor as profundas marcas deixadas pela bomba na sociedade japonesa por gerações. Uma visão que surpreende por não conhecermos a tragédia sob esse ângulo.

            No posfácio da obra, a autora Fumiyo Kouno, nascida em Hiroshima, confessa que primeiramente esteve apreensiva em retratar uma história sobre a Bomba Nuclear, uma vez que cresceu evitando qualquer coisa relacionada ao desastre, pois era um assunto que muito a afetava: ”Considerava uma história antiga que bastava ter consciência de que era horrível, mas que deveria permanecer intocada”. No entanto, a autora completa: “[...] acredito que tenha aceitado criar esta obra porque, lá no fundo, eu me sentia uma irresponsável e achava anormal permanecer alheia à questão, ou melhor, que eu tentasse continuar alheia a ela.” Kouno afirma que resolveu escrever uma história sobre os efeitos da bomba quando percebeu que muitas pessoas fora de Hiroshima não tinham a oportunidade de saber a respeito.

“Em “A Terra das Cerejeiras” [título da segunda história] eu tentei falar sobre aquilo que sempre quis saber na época em que vivia fugindo do assunto. Desejo, do fundo do coração, que as pessoas que se identificarem comigo possam usar esta obra para ajudá-las a crescer fortes e gentis como as árvores de cerejeira”
- Fumiyo Kouno

            Hiroshima –  A cidade da calmaria ganhou diversos prêmios e tornou-se símbolo da luta contra as armas nucleares, sendo referência em movimentos internacionais pela paz, como a Conferência do Tratado de Não-Proliferação das Armas Nucleares. Considero-a uma obra essencial para o melhor entendimento da totalidade do desastre da Bomba de Hiroshima, pois percebemos, por meio da visão das duas jovens japonesas, os efeitos dessa tragédia na sociedade japonesa, as sombras lançadas sobre seu cotidiano e a extraordinária força desse povo para a resistência aos desastres. É impossível não admirá-los.

Capa do mangá lançado em 2010 pela JBC




“A calmaria da hora do pôr-do-sol pode cessar diversas vezes, mas, mesmo assim, ela nunca acaba.”







*Obs: Peço desculpas pela demora para a publicação do novo post, estive doente na última semana e isso atrasou diversos trabalhos. Mas estou de volta!

segunda-feira, 14 de março de 2011

A neblina que assiste ao fim de Policarpo

            Em minha recente leitura de Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, obra que representa com clareza o Pré-Modernismo, deparei-me com um trecho que me tocou particularmente e resolvi reproduzi-lo aqui no blog. O que tanto me impressionou foi a maneira como o autor conduz o nosso olhar pela paisagem, fazendo com que o leitor adentre profundamente o cenário que se apresenta, como se esse nascesse exatamente no momento em que nossos olhos perpassam as palavras do narrador. Mais do que a própria paisagem, é a emoção e a inquietude que ela provoca que me atingiram com força, devido à descrição primorosa de Lima Barreto.

            “Oito horas da manhã. A cerração ainda envolve tudo. Do lado da terra, mal se enxergam as partes baixas dos edifícios próximos; para o lado do mar, então, a vista é impotente contra aquela treva esbranquiçada e flutuante, contra aquela muralha de flocos e opaca, que se condensa ali e aqui em aparições, em semelhanças de coisas. O mar está silencioso: há grandes intervalos entre o seu fraco marulho. Vê-se da praia um pequeno trecho, sujo, coberto de algas, e o odor da maresia parece mais forte com a neblina. Para esquerda e para a direita, é o desconhecido, o Mistério. Entretanto, aquela pasta espessa, de uma claridade difusa, está povoada de ruídos. O chiar das serras vizinhas, os apitos de fábricas e locomotivas, os guinchos de guindastes dos navios enchem aquela manhã indecifrável e taciturna; e ouve-se mesmo a bulha compassada de remos que ferem o mar. Acredita-se, dentro daquele decoro, que é o Caronte que traz a sua barca para uma das margens do Estige...
            Atenção! Todos perscrutam a cortina de névoa pastosa. Os rostos estão alterados; parece que do seio da bruma vão surgir demônios...
            Não se ouve mais a bulha: o escaler afastou-se. As fisionomias respiram aliviadas.
            Não é noite, não é dia; não é o dilúculo, não é o crepúsculo; é a hora da angústia, é a luz da incerteza. No mar, não há estrelas nem sol que guiem; na terra, as aves morrem de encontro às paredes brancas das casas. A nossa miséria é a mais completa e a falta daqueles mudos marcos da nossa atividade dá mais forte percepção do nosso isolamento do seio da natureza grandiosa.
            Os ruídos continuam, e, como nada se vê, parece que vêm do fundo da terra ou são alucinações auditivas. A realidade só nos vem do pedaço do mar que se avista, marulhando com grandes intervalos, fracamente, tenuamente, a medo, de encontro à areia da praia, suja de bodelhas, algas e sargaços.
            Aos grupos, após o rumor dos remos, os soldados deitaram-se pela relva que continua a praia. Alguns já cochilam; outros procuram com os olhos o céu através do nevoeiro que lhes umedece o rosto.”
          
 Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, 
Capítulo II da Terceira Parte.

            Como essa semana terei várias provas e trabalhos, não sei quando poderei trazer o post em que estive trabalhando nos últimos dias. Fica esse trechinho especial de Policarpo Quaresma e espero que no próximo fim de semana eu esteja de volta. Também andei escrevendo uma resenha de O Discurso do Rei, mas, como é parte de um trabalho, só poderei postá-la em dois meses.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Um corredor de pensamentos que desemboca em sonho


“O sonífero não tem mais efeito imediato, e já sei que o caminho do sono é como um corredor cheio de pensamentos. Ouço ruídos de gente, de vísceras, um sujeito entubado emite sons rascantes, talvez queira me dizer alguma coisa. [...] Sirene na rua, telefone, passos, há sempre uma expectativa que me impede de cair no sono. É a mão que me sustém pelos raros cabelos. Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco.”
                                                        - Leite Derramado, Chico Buarque


Capa do livro, retirada do site oficial
         O trecho acima, localizado logo ao fim do primeiro capítulo do livro Leite Derramado, do escritor, compositor e cantor Chico Buarque, foi como um convite para a minha leitura das memórias de Eulálio d’Assumpção. Ao mergulhar na narrativa desse homem muito velho, deitado ao leito de um hospital, vi nessas primeiras palavras a abertura para o corredor de sua história, onde realidade, memórias e pensamentos misturam-se num sonho em preto e branco, que por vezes tinge-se de laranja.
            Em um discurso destinado à sua filha, às enfermeiras ou a quem estiver disposto a ouvir, Eulálio d’Assumpção tece uma intrincada teia repleta de lembranças e sonhos, uma teia formada de situações passadas, presentes e futuras narradas de maneira arbitrária, como os devaneios que nos visitam antes de adormecermos. Em um momento vemos Eulálio adulto, caminhando sobre “o desenho das ondas em preto-e-branco, no mosaico da calçada de Copacabana”, em outro, surpreendemo-nos em seu leito de criança, atormentado por uma caxumba enquanto pede que sua mãe lhe cante uma berceuse. “[...] Você se esqueceu do meu beijo, não tirou minha febre, partiu sem cantar minha berceuse”.
            Descendente de uma família tradicional brasileira, Eulálio d’Assumpção não se retém apenas em suas memórias, mas transmite com a mesma paixão as histórias de seus ancestrais mais distintos, de seus descendentes e do último Assumpção. Com uma linguagem peculiar, característica de sua educação e de sua vivência, o velho tece em seu breve discurso um riquíssimo retrato de toda a história do Brasil. Assim, de maneira contraditória, Eulálio acaba traçando, por meio de relatos não cronológicos, uma verdadeira linha do tempo desses anos.
            Mas, além de um relato familiar, Leite Derramado também é marcado pela imagem de uma relação que envolve, intriga e apaixona. Matilde, “a mais moreninha das congregadas marianas”, aparece para o leitor em flashbacks e lembranças entrecortadas que por vezes misturam-se a sonhos na mente do velho Eulálio, tomado por essa paixão que o acompanha durante toda a vida e, mesmo em seus últimos momentos, ainda queima. Retratada assim por essa ardente paixão, Matilde aparece para o leitor com uma beleza indescritível, seja saltitando na calçada como se jogasse amarelinha, seja dançando ao som do samba de vitrola, seja sentada no piano de cauda, “os cabelos molhados sobre as costas nuas.
            A Colônia e Portugal, o Império, a Primeira República, a Belle Époque, a Ditadura Militar e o Rio de Janeiro contemporâneo, em uma narrativa marcada por flutuações e lembranças entrecortadas, são tratados através das experiências de uma família nobre e tradicional brasileira que sente os efeitos do tempo sobre si. Dessa forma, um Barão do Império, um Senador da Primeira República, um jovem comunista e um moleque do Rio de Janeiro atual, todos esses personagens da família Assumpção aparecem e desaparecem rapidamente na narrativa, deixando as marcas de sua história sobre o relato envolvente de Eulálio. Por isso, Leyla Perrone-Moisés descreve a narrativa de Leite Derramado como uma saga familiar marcada pela decadência que se desenvolve de maneira breve, concisa e precisa. 

         “Tudo, neste texto, é conciso e preciso. Como num quebra-cabeça bem concebido, nenhum elemento é supérfluo [...] É espantoso como tantas personagens conseguem vida própria em tão pouco espaço textual. Leite derramado é obra de um escritor em plena posse de seu talento e de sua linguagem”
Leyla Perrone-Moisés

             Em Leite Derramado, as mudanças, os personagens e as situações aparecem e nos abandonam em relatos fugazes que se perdem na mente do velho Eulálio, como em sonho. E, como em sonho, reaparecem, se reinventam, se misturam e se esquecem. Como se as lembranças do velho no leito de hospital fizessem parte de um corredor impreciso de pensamentos, que desemboca num sonho contínuo. No fim, uma mancha alaranjada sobre o retrato em branco e preto. 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A Educação no Século XXI: Mudando os paradigmas


       Cursando este ano o terceiro ano do Ensino Médio, estou terminando um longo processo de vivência no ambiente escolar. Dessa maneira, ao deparar-me com esse vídeo, não pude deixar de compreender os questionamentos e reflexões feitas pelo pensador britânico Ken Robinson em sua palestra. O vídeo faz parte de um projeto da RSA em que palestras são acompanhadas através de desenhos. Assim, a exposição de idéias ganha um outro olhar, apresentando um caráter interativo e complementando-se para uma maior compreensão e apreensão dos questionamentos expostos.
Calvin, personagem de Bill Watterson
       Achei esse vídeo interessantíssimo e não pude deixar de postá-lo aqui no blog. Convivendo diariamente com essa realidade, percebo a tendência cada vez maior para a utilização de medicamentos pesados nos estudantes como maneira de fazê-los focar nas aulas. Vivendo na era da informação, as crianças e os adolescentes se sentem desanimados no ambiente escolar, desmotivados a prestar atenção na aula enquanto  lá fora se abre um leque imenso de entretenimento e informação. Estudar torna-se, desde muito cedo, um exercício enfadonho e tedioso.
      Dessa maneira, os estudantes não enxergam o propósito da escola. Adquirir conhecimento, conhecer o universo e a cultura da nossa sociedade - um exercício que certamente é um dos processos mais instigantes da vida - torna-se para aquelas crianças e adolescentes, sinônimo de chatice. Obrigados a estudar assuntos que não lhes motivam para passarem em provas que não medem de maneira efetiva seus conhecimentos, sentem-se cada vez mais pressionados. E quando a perspectiva do vestibular começa a aparecer efetivamente em seu cotidiano, essa pressão agrava-se de maneira absurda. 
      Inúmeras vezes presenciei casos de pessoas brilhantes em áreas específicas (artes, filosofia, ciência, etc) que, em meio à carga infinita de obrigações e exames, enxergam a escola como uma espécie de prisão, o que as sufoca e muitas vezes impede o desenvolvimento de suas habilidades e conhecimento naquilo que se sentem atraídas. No Ensino Médio, por exemplo, o currículo é tão pesado e abundante que muitos, já pressioandos pela escolha de sua carreira futura, sucumbem ao estresse e, em alguns casos, até mesmo à depressão.
      Penso que Mudar os Paradigmas da Educação é um processo lento que certamente irá gerar grandes discussões - mas é algo extremamente necessário. Precisamos de um modelo de educação que se adeque ao contexto social em que vivemos. Conhecimento deve tornar-se, para os estudantes, sinônimo de prazer.



Para iniciar essa discussão, nada melhor do que a palestra acima do pensador Ken Robinson (com legendas em português), que encontrei nesse post do  Viomundo.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Uma dupla visita ao passado - Impressões sobre Orgulho e Preconceito 1940

Greer Garson e Laurence Olivier em Orgulho e Preconceito (1940)

        Há alguns dias, um querido tio, conhecendo a paixão que tenho pelas obras da escritora inglesa Jane Austen, presenteou-me com o filme Orgulho e Preconceito de 1940, estrelado por Greer Garson e Laurence Olivier. Curiosa, já assisti ao filme e gostaria de registrar aqui no Violeta algumas de minhas impressões.
        No entanto, antes de começar a discorrer sobre o filme  em si, acredito que seja importante acrescentar o seguinte: penso que, para que a adaptação para o cinema seja fiel à obra original, o principal fator que deve estar presente é a essência das personagens e do enredo que proporcionará o desenvolvimento dessas personagens. Dessa maneira, apesar de ser uma leitora ávida das obras de Jane Austen, não haverá aqui as reclamações fervorosas que são comuns aos fãs apaixonados. Mas certamente haverá críticas. Com esse pensamento em mente, falo agora sobre o filme em questão.
        Logo na primeira cena em que somos introduzidos, com uma vista graciosa da vila de Meryton, a Sra. Bennet e às suas filhas mais velhas, notei que o roteiro tomaria certas liberdades com a sequência dos eventos. Para mim, isso de forma alguma desqualifica uma adaptação - penso que as alterações são inclusive necessárias para que se mantenha a  unidade do trabalho de acordo com a obra original. Afinal, cinema e literatura são linguagens diferentes.      
As irmãs Bennet
        A produção do filme é glamorosa.  Adoro assistir  a filmes produzidos nesse período, há algo neles que simplesmente me encanta. Entretanto, em minhas passagens por comentários e resenhas, notei que a maioria das críticas sobre esse filme estão relacionadas ao figurino (aparentemente, reaproveitaram o figurino de outra produção). Confesso que, tendo assistido a outras adaptações de romances de Jane Austen e estando habituada ao figurino correspondente da época, os trajes dos personagens me incomodaram, afinal, houve um total descompasso entre o figurino e o período histórico. Acredito que isso ficou explícito, mas também não descarto o fato de que, por ter visto tantas adaptações de histórias desse período, o estranhamento possa ter sido maior em mim. Todavia, os vestidos de mangas bufantes não conseguem ofuscar o brilho da produção.
       De certa forma, acredito que o ouro dessa adaptação encontra-se na atuação de seus atores. Greer Garson sem dúvida alguma foi uma excelente Elizabeth Bennet. Ela demonstra possuir grande segurança, facilmente tomando conta da tela. Acredito que há verdade em sua atuação e ela consegue transmitir a força, as virtudes, o sarcasmo e  os defeitos da personagem com primor. A Sra. Bennet e seu marido são simplesmente hilários e é impossível não se derramar em risadas em seus diálogos. Também gostei muito das irmãs de Elizabeth, todas conseguiram captar muito bem suas personagens (gostei especialmente da  Mary nessa adaptação).   Enfim, de maneira geral, todos os atores fazem uma grande homenagem à obra de Jane Austen.
        No entanto, devo confessar que Laurence Olivier não atendeu totalmente às minhas expectativas como Sr. Darcy durante a primeira metade do filme. Acredito que ele ficou muito "solto" no início, demasiado cortês  e gentil para o Darcy reservado, arrogante e  tímido que faz com que todos  do vilarejo  (e os leitores/espectadores da obra) o vejam como um homem detestável e orgulhoso. Assim, não senti no filme aquela mudança em Darcy que tanto nos impressiona ao lermos o livro. Devo acrescentar também que não gostei muito das ações da Lady Catharine no encerramento do filme – nesse caso, acredito que a alteração causou uma mudança na motivação da personagem em questão, o que afeta diretamente a crítica social que Austen apresenta no do retrato dessa personagem.
        Claramente a intenção dos responsáveis pelo filme foi produzir uma comédia (como vemos até mesmo no cartaz). Observando isso, a qualidade dessa produção é indiscutível. Certamente, todos os atores, cenários, produtores e responsáveis pelo filme conseguiram criar uma excelente reprodução do universo de Jane Austen. Sabemos que há falhas. Entretanto, não devemos deixar de assistir a essa produção que, de maneira tão glamorosa, nos enche de prazer e  produz momentos de risadas incessantes com  os personagens que, há duzentos anos, permeiam os cenários de uma das obras mais aclamadas da literatura inglesa. Afinal, poucas coisas superam o prazer de observar a animada Sra Bennet disputando corrida de carruagem com Lady Lucas para transmitir primeiro a seu marido a notícia que pode afetar drasticamente o futuro de suas filhas.
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