“O sonífero não tem mais efeito imediato, e já sei que o caminho do sono é como um corredor cheio de pensamentos. Ouço ruídos de gente, de vísceras, um sujeito entubado emite sons rascantes, talvez queira me dizer alguma coisa. [...] Sirene na rua, telefone, passos, há sempre uma expectativa que me impede de cair no sono. É a mão que me sustém pelos raros cabelos. Até eu topar na porta de um pensamento oco, que me tragará para as profundezas, onde costumo sonhar em preto-e-branco.”
- Leite Derramado, Chico Buarque
Capa do livro, retirada do site oficial |
O trecho acima, localizado logo ao fim do primeiro capítulo do livro Leite Derramado, do escritor, compositor e cantor Chico Buarque, foi como um convite para a minha leitura das memórias de Eulálio d’Assumpção. Ao mergulhar na narrativa desse homem muito velho, deitado ao leito de um hospital, vi nessas primeiras palavras a abertura para o corredor de sua história, onde realidade, memórias e pensamentos misturam-se num sonho em preto e branco, que por vezes tinge-se de laranja.
Em um discurso destinado à sua filha, às enfermeiras ou a quem estiver disposto a ouvir, Eulálio d’Assumpção tece uma intrincada teia repleta de lembranças e sonhos, uma teia formada de situações passadas, presentes e futuras narradas de maneira arbitrária, como os devaneios que nos visitam antes de adormecermos. Em um momento vemos Eulálio adulto, caminhando sobre “o desenho das ondas em preto-e-branco, no mosaico da calçada de Copacabana”, em outro, surpreendemo-nos em seu leito de criança, atormentado por uma caxumba enquanto pede que sua mãe lhe cante uma berceuse. “[...] Você se esqueceu do meu beijo, não tirou minha febre, partiu sem cantar minha berceuse”.
Descendente de uma família tradicional brasileira, Eulálio d’Assumpção não se retém apenas em suas memórias, mas transmite com a mesma paixão as histórias de seus ancestrais mais distintos, de seus descendentes e do último Assumpção. Com uma linguagem peculiar, característica de sua educação e de sua vivência, o velho tece em seu breve discurso um riquíssimo retrato de toda a história do Brasil. Assim, de maneira contraditória, Eulálio acaba traçando, por meio de relatos não cronológicos, uma verdadeira linha do tempo desses anos.
Mas, além de um relato familiar, Leite Derramado também é marcado pela imagem de uma relação que envolve, intriga e apaixona. Matilde, “a mais moreninha das congregadas marianas”, aparece para o leitor em flashbacks e lembranças entrecortadas que por vezes misturam-se a sonhos na mente do velho Eulálio, tomado por essa paixão que o acompanha durante toda a vida e, mesmo em seus últimos momentos, ainda queima. Retratada assim por essa ardente paixão, Matilde aparece para o leitor com uma beleza indescritível, seja saltitando na calçada como se jogasse amarelinha, seja dançando ao som do samba de vitrola, seja sentada no piano de cauda, “os cabelos molhados sobre as costas nuas”.
A Colônia e Portugal, o Império, a Primeira República, a Belle Époque, a Ditadura Militar e o Rio de Janeiro contemporâneo, em uma narrativa marcada por flutuações e lembranças entrecortadas, são tratados através das experiências de uma família nobre e tradicional brasileira que sente os efeitos do tempo sobre si. Dessa forma, um Barão do Império, um Senador da Primeira República, um jovem comunista e um moleque do Rio de Janeiro atual, todos esses personagens da família Assumpção aparecem e desaparecem rapidamente na narrativa, deixando as marcas de sua história sobre o relato envolvente de Eulálio. Por isso, Leyla Perrone-Moisés descreve a narrativa de Leite Derramado como uma saga familiar marcada pela decadência que se desenvolve de maneira breve, concisa e precisa.
“Tudo, neste texto, é conciso e preciso. Como num quebra-cabeça bem concebido, nenhum elemento é supérfluo [...] É espantoso como tantas personagens conseguem vida própria em tão pouco espaço textual. Leite derramado é obra de um escritor em plena posse de seu talento e de sua linguagem”
– Leyla Perrone-Moisés
Em Leite Derramado, as mudanças, os personagens e as situações aparecem e nos abandonam em relatos fugazes que se perdem na mente do velho Eulálio, como em sonho. E, como em sonho, reaparecem, se reinventam, se misturam e se esquecem. Como se as lembranças do velho no leito de hospital fizessem parte de um corredor impreciso de pensamentos, que desemboca num sonho contínuo. No fim, uma mancha alaranjada sobre o retrato em branco e preto.