Retrato de Virginia Woolf - Fonte |
“Não quero ser célebre nem grande. Quero avançar, mudar, abrir meu espírito e meus olhos, recusar a ser rotulada e estereotipada. O que conta é liberar-se por si mesma, descobrir suas próprias dimensões, recusar os entraves.”
- Virginia Woolf*
Livro lançado pela Cosac Naify |
Nas últimas férias, tive meu primeiro contato com a prosa de Virginia Woolf através do livro de contos completos da autora lançado em 2005 pela Cosac Naify sob a primorosa tradução de Leonardo Fróes – aliás, em excelente edição de capa dura, com notas que detalham a tradução e as versões escolhidas dentre os originais datilografados.
Com onze romances, quatro ensaios, uma peça de teatro e um vasto trabalho de artigos, além de fundar com seu marido Leonard Woolf uma consagrada editora e participar do grupo de Bloomsbury, Virginia Woolf tornou-se uma das figuras mais proeminentes da literatura da primeira metade do século XX. Com seus olhos vazios e distantes, como dois pontos a vagar etéreos no universo do imaginário, revelou-se uma das figuras mais importantes e intrigantes da literatura inglesa, além de uma ávida defensora dos direitos das mulheres em um período no qual essas questões fervilhavam na sociedade vitoriana.
De fato, já nas primeiras páginas do livro somos introduzidos a essa aguçada sensibilidade da autora em relação ao universo feminino. Em Phyllis e Rosamond, primeiro conto da edição datado de 1906, Virginia esclarece:
“[...] Como os retratos desse tipo que temos são quase invariavelmente do sexo masculino, que se empertigava pelo palco com proeminência maior, parece valer a pena tomar como modelo uma dessas muitas mulheres que se agrupam na sombra.”
Com essa explicação, Virginia Woolf lança seus leitores no consciente de suas personagens logo nesse primeiro conto, expressando, com uma acuidade que ao longo do livro notamos ser-lhe característica, as angústias, medos e anseios dessas mulheres que vivem sufocadas nas sombras da vida doméstica, mas que sonham em libertar-se de seus grilhões. Não há dúvidas que esse é um dos temas mais importantes para a autora, que desde pequena sofreu as mais terríveis opressões do universo patriarcal em que viveu e que, ao longo de toda sua vida, defendeu a independência financeira como o meio das mulheres se expressarem no mundo.
Esse universo feminino é assim retratado com a sensibilidade que lhe é própria em diversos de seus contos: na súbita e tardia percepção de uma sombra em O misterioso caso de miss V., no delicioso retrato histórico de O diário de mistress Joan Martyn, na angústia de Mabel ao deparar-se com seu reflexo no espelho em O vestido novo, no relato da construção de uma biografia em Memórias de uma romancista e no cômico e ácido Uma sociedade, no qual a autora dá a voz a diversas mulheres que buscam a resposta de uma única pergunta: estão justificadas a dar continuidade à raça humana? De fato, um dos diversos méritos de Virgínia Woolf foi, além de consagrar-se em uma profissão dominada por homens, introduzir as expressões, as vontades e toda a essência de notáveis personagens femininas.
No entanto, Virgínia não retrata somente a perspectiva feminina utilizando-se do fluxo de consciência (stream of consciousness), técnica que ajudou a consagrar – a saber, a representação dos processos mentais da personagem, muitas vezes sem relações de causalidade, recurso muito presente na prosa de Clarice Lispector. A escritora cria inúmeros personagens peculiares que destrincham seus pensamentos, como o obcecado colecionador de objetos de Objetos sólidos, a pobre viúva e o papagaio do belíssimo A viúva e o papagaio: uma história verídica, o melancólico casal de O homem que amava sua espécie e os diversos personagens que pensam e dialogam ao passar pelo canteiro do parque em Kew Gardens. No belo e trágico O legado, acompanhamos com apreensão e curiosidade as descobertas de um viúvo que lê o diário de sua falecida mulher.
Por sua vez, no meu conto favorito, Um diálogo no monte Pentélico, inspirado em uma viagem da autora para a Grécia em 1906, um grupo de ingleses discutem sobre a sociedade grega com certa melancolia ao descerem a encosta do monte. Destaco um trecho do conto:
“E os ingleses não poderiam ter dito naquele momento, em que ponta se achavam, pois essa aleia era tão lisa como um anel de ouro. Mas os gregos, ou seja, Platão e Sófocles e os demais, eram íntimos deles, tão íntimos quanto qualquer amigo ou um amante, e respiravam aquele mesmo ar que beijava as faces e vinha, só que eles, como jovens que eram, ainda impeliam à frente e questionavam o futuro.”
Retrato de Virginia Woolf - Fonte |
Acompanhando os contos completos da autora, observamos seus experimentos literários, a criação e consagração de seu estilo e o seu desenvolvimento de 1906 a 1941. Dessa forma, não há como não pintar em nossa mente um retrato dessa personagem tão peculiar que intrigou gerações.
De minha parte, não vejo seus conhecidos transtornos mentais e sua propensão a terríveis depressões como expressões únicas de uma mulher dominada pela melancolia e pela fragilidade. Vejo-a sim, principalmente ao acompanhar suas narrativas que pulsam como a própria vida, como uma mulher forte capaz de superar inúmeras adversidades, determinada a registrar suas palavras e a expressar sua existência em sua incansável busca por um sentido de viver, que, desde pequena, encontra na literatura.
Vejo seus olhos: dois pontos perdidos no imaginário, mas incansáveis exploradores do real.
* Trecho do diário de Virginia Woolf, extraído da biografia Virginia Woolf, de Alexandra Lemasson e tradução de Ilana Heineberg.