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segunda-feira, 14 de março de 2011

A neblina que assiste ao fim de Policarpo

            Em minha recente leitura de Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, obra que representa com clareza o Pré-Modernismo, deparei-me com um trecho que me tocou particularmente e resolvi reproduzi-lo aqui no blog. O que tanto me impressionou foi a maneira como o autor conduz o nosso olhar pela paisagem, fazendo com que o leitor adentre profundamente o cenário que se apresenta, como se esse nascesse exatamente no momento em que nossos olhos perpassam as palavras do narrador. Mais do que a própria paisagem, é a emoção e a inquietude que ela provoca que me atingiram com força, devido à descrição primorosa de Lima Barreto.

            “Oito horas da manhã. A cerração ainda envolve tudo. Do lado da terra, mal se enxergam as partes baixas dos edifícios próximos; para o lado do mar, então, a vista é impotente contra aquela treva esbranquiçada e flutuante, contra aquela muralha de flocos e opaca, que se condensa ali e aqui em aparições, em semelhanças de coisas. O mar está silencioso: há grandes intervalos entre o seu fraco marulho. Vê-se da praia um pequeno trecho, sujo, coberto de algas, e o odor da maresia parece mais forte com a neblina. Para esquerda e para a direita, é o desconhecido, o Mistério. Entretanto, aquela pasta espessa, de uma claridade difusa, está povoada de ruídos. O chiar das serras vizinhas, os apitos de fábricas e locomotivas, os guinchos de guindastes dos navios enchem aquela manhã indecifrável e taciturna; e ouve-se mesmo a bulha compassada de remos que ferem o mar. Acredita-se, dentro daquele decoro, que é o Caronte que traz a sua barca para uma das margens do Estige...
            Atenção! Todos perscrutam a cortina de névoa pastosa. Os rostos estão alterados; parece que do seio da bruma vão surgir demônios...
            Não se ouve mais a bulha: o escaler afastou-se. As fisionomias respiram aliviadas.
            Não é noite, não é dia; não é o dilúculo, não é o crepúsculo; é a hora da angústia, é a luz da incerteza. No mar, não há estrelas nem sol que guiem; na terra, as aves morrem de encontro às paredes brancas das casas. A nossa miséria é a mais completa e a falta daqueles mudos marcos da nossa atividade dá mais forte percepção do nosso isolamento do seio da natureza grandiosa.
            Os ruídos continuam, e, como nada se vê, parece que vêm do fundo da terra ou são alucinações auditivas. A realidade só nos vem do pedaço do mar que se avista, marulhando com grandes intervalos, fracamente, tenuamente, a medo, de encontro à areia da praia, suja de bodelhas, algas e sargaços.
            Aos grupos, após o rumor dos remos, os soldados deitaram-se pela relva que continua a praia. Alguns já cochilam; outros procuram com os olhos o céu através do nevoeiro que lhes umedece o rosto.”
          
 Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, 
Capítulo II da Terceira Parte.

            Como essa semana terei várias provas e trabalhos, não sei quando poderei trazer o post em que estive trabalhando nos últimos dias. Fica esse trechinho especial de Policarpo Quaresma e espero que no próximo fim de semana eu esteja de volta. Também andei escrevendo uma resenha de O Discurso do Rei, mas, como é parte de um trabalho, só poderei postá-la em dois meses.
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